Wednesday 20 July 2011

VAN GOGH: O SUICIDADO PELA SOCIEDADE

Recentemente sinto um desconforto incontrolável, e um desespero assombroso me toma de assalto toda vez que busco as razões de minha inquietação sem jamais me aproximar de uma resposta. A arte, como sempre, surge como amiga fiel nestas horas. Verdugo de minha sanidade, esta forma sincera de sentir não me trás o conforto do álcool ou a satisfação do gozo. Pelo golpe da arte ressurge em mim um híbrido de dor e medo, de pesar e terror, de espanto e admiração... e na sublime junção destes elementos sinto em mim revigorada a aura.

Não tenho bem certeza do que fazer com esta energia, tampouco acredito que a posse de uma aura faça de mim alguém bem vindo no mundo dos que me cercam... mas o fato é que, além de uma obra inspiradora, Van Gogh legou à humanidade uma vida dedicada à essência do que sentia, uma verdadeira lição que me motiva a enterrar-me cada vez mais fundo neste universo que surge dentro de mim para corroer a podridão da sociedade, ou ao menos livrar-me dela.

Abaixo segue uma seleção de trechos da obra de Antonin Artaud sobre a vida e obra de Van Gogh.

Relendo este pequeno livrinho que há muito tempo ganhei de um amigo, tomei o cuidado de posicionar junto a cada trecho um quadro de Van Gogh que diz com a alma o que Artaud busca extrair das palavras.



Os corvos pintados por ele, dois dias antes da sua morte, não lhe abriram as portas de certa glória póstuma, como tampouco o fizeram suas demais telas, mas abrem para a pintura pintada, ou melhor, para a natureza não-pintada, a porta oculta de um futuro possível, de uma permanente realidade possível através da porta aberta por van Gogh para um enigmático e pavoroso além.

Não é comum ver um homem, com o balaço que o matou já no seu ventre, povoar uma tela de corvos negros sobre uma espécie de campo talvez lívido, em todo caso vazio, no qual a cor de borra de vinho da terra se confronta violentamente com o amarelo sujo do trigo.

Mas nenhum outro pintor além de van Gogh teria achado, como ele o fez para pintar seus corvos, esse negro de trufa, esse negro de “banquete faustoso”e, ao mesmo, tempo, como que excremencial das asas dos corvos surpreendidos pelo resplendor declinante do crepúsculo.

E do que se queixa a terra sob as asas dos faustosos corvos, sem dúvida faustosos só para van Gogh, e ainda mais, suntuosos augúrio de um mal que já não lhe concerne?

Pois ninguém, até então, havia conseguido converter a terra nesse trapo sujo empapado de vinho e sangue. O céu do quadro é muito baixo, aplastrado,violáceo como as margens do raio. A insólita franja tenebrosa do vazio que se ergue atrás do relâmpago. Van Gogh soltou seus corvos, como se fossem os micróbios negros do seu baço de suicida, a poucos centímetros do alto e como se viessem por baixo da tela, seguindo o negro talho da linha onde o bater da sua soberba plumagem acrescenta ao turbilhão da tormenta terrestre as ameaças de uma sufocação vinda do alto. E contudo o quadro é soberbo. Soberbo, suntuoso e sereno quadro. Digno acompanhamento para a morte daquele que em vida fez girarem tantos sóis ébrios sobre tantos montões de feno rebeldes e que, desesperado,com um balaço no ventre, não poderia deixar de inundar com sangue e vinho uma paisagem, empapando a terra com uma última emulsão, radiante e tenebrosa, com sabor de vinho azedo e vinagre talhado. Pois esse é o tom da última tela pintada por van Gogh, que nunca ultrapassou os limites da pintura e evoca os acordes bárbaros e abruptos do mais patético, passional e apaixonado drama isabelino.

É isso o que mais me surpreende em Van Gogh, o mais pintor de todos os pintores e aquele que, sem afastar-se do que chamamos de pintura, sem sair dos limites do tubo, do pincel, do enquadramento do tema e da tela, sem recorrer à anedota, ao relato, ao drama, à profusa ação de imagens, à beleza intrínseca do assunto, conseguiu imbuir a natureza e os objetos de tamanha paixão que qualquer conto fabuloso de Edgar Poe, Herman Melville, Nathanael Haworthone, Gérard de Nerval, Achim von Arnim ou Hoffmann em nada superam, no plano psicológico e dramático, suas modestas telas, telas que, por outro lado, são quase todas de reduzidas dimensões, como se respondessem a um propósito deliberado (...)



(...)

"Uma lamparina sobre uma cadeira, um sofá de palha verde trançada,um livro no sofá e está revelado o drama. Quem vai entrar? Será Gaughin ou algum outro fantasma?A lamparina acesa sobre a cadeira de palha verde indica, ao que parece, alinha de demarcação luminosa que separa as duas individualidades antagônicas de van Gogh e Gaughin.

Relatado, o motivo estético da sua divergência talvez não ofereça um grande interesse, mas serve para indicar a profunda divisão humana entre os temperamentos de van Gogh e Gauguin. Penso que Gauguin achava que o artista deveria buscar o símbolo, o mito, ampliar as coisas da vida até o mito, enquanto van Gogh achava que é preciso deduzir o mito das coisas mais modestas da vida. De minha parte, penso que tinha absoluta razão. Pois a realidade é tremendamente superior a qualquer história, a qualquer fábula, a qualquer divindade, a qualquer super-realidade. Basta ter o gênio para saber interpretá-la." (...)


(...)

"O fardo de pintar sem saber por quê ou para quê. Pois não é para este mundo, nunca é para esta terra onde todos, desde sempre, trabalhamos, lutamos, uivando de horror, de fome, miséria, ódio, escândalo e nojo e onde fomos todos envenenados, embora com tudo isso tenhamos sido enfeitiçados e finalmente nos suicidamos como se não fôssemos todos, como o pobre van Gogh, suicidados pela sociedade!" (...)



(...)

"Não preciso interrogar a Grande Pitonista para que ela me diga de quantas supremas obras primas a pintura teria se enriquecido se Van Gogh não tivesse morrido aos trinta e sete anos, pois não consigo acreditar que depois dos corvos, Van Gogh viesse a pintar algum outro quadro. Creio que morreu aos trinta e sete anos porque já havia, desgraçadamente, chegado ao término da sua fúnebre e revoltante história de indivíduo sufocado por um espírito maléfico.

Pois não foi por si próprio, por causa de sua própria loucura, que Van Gogh abandonou a vida.

Foi pela pressão, dois dias antes de sua morte, desse espírito maléfico que se chamava doutor Gachet, psiquiatra improvisado e causa direta, eficaz e suficiente da sua morte.

Lendo as cartas de Van Gogh a seu irmão cheguei à firme e sincera convicção de que o doutor Gachet, “psiquiatra”, na verdade detestava Van Gogh, pintor; detestava-o como pintor, e acima de tudo como gênio.

É quase impossível ser ao mesmo tempo médico e homem honrado, mas é vergonhosamente impossível ser psiquiatra sem estar ao mesmo tempo marcado a fogo pela mais indiscutível insanidade: a de não poder lutar contra esse velho reflexo atávico da multidão, que converte qualquer homem de ciência, aprisionado na turba, numa espécie de inimigo nato e inato de todo gênio.

A medicina nasceu do mal, se é que não nasceu da doença e não provocou, pelo contrário, a doença para assistir ter uma razão de ser; mas a psiquiatria nasceu da multidão vulgar de pessoas que quiseram preservar o mal como fonte da doença e que assim produziram do seu próprio nada uma espécie de Guarda Suiça para extirpar na raiz o espírito de rebelião reivindicatória que está na origem de todo gênio.

Em todo alienado existe um gênio não compreendido, cujas ideias, brilhando na sua cabeça, apavoram as pessoas e que somente pode encontrar no delírio uma fuga às opressões que a vida lhe preparou." (...)


(...)

"E o rei Van Gogh incubava sonolento o próximo alarma da insurreição da saúde.

Como?

Pelo fato de que a boa saúde é uma abundância de endemias encurraladas, de um formidável desejo de vida com cem chagas corroídas que, apesar de tudo, é preciso fazer viver.

Aquele que esfumaça a bomba no cozimento e a vertigem não merece estar vivo

Este é o bálsamo que o pobre Van Gogh considerou como dever de manifestar na forma de deflagrações.

Mas o mal que o preocupava lhe fez mal.

O turco do rosto honrado aproximou-se de Van Gogh para extrair-lhe sua amêndoa confeitada, com o objetivo de separar o confeito (natural) que nela se formava.

E Van Gogh consumiu ali mil de seus verões.

Por isso morreu aos 37 anos, antes de viver, pois todos os macacos se alimentaram antes dele das forças que chegou a reunir; forças essas que agora devem ser devolvidas, para que seja possível o renascimento de Van Gogh.

Frente a humanidade de macacos covardes e cachorros molhados, a pintura de Van Gogh demonstrará ter pertencido a um tempo em que não houve alma, nem espírito, nem consciência, nem pensamento; mas tão somente elementos primitivos, alternativamente encadeados e desencadeados.

Paisagens de intensas convulsões, de traumatismos enlouquecidos, como os de um corpo que a febre atormenta para restituir sua perfeita saúde. Por baixo da pele o corpo é uma usina requentada, e por fora o doente brilha , reluz, por todos os seus poros, escancarados , como uma paisagem de Van Gogh na metade do dia.



Apenas uma guerra perpétua explica uma paz que é unicamente trânsito, como o leite a ponto de esparramar explica a caçarola onde ferve.

Desconfiem das formosas paisagens de Van Gogh, revolucionadas e plácidas, crispadas e contidas.

Representam a saúde entre dois acessos de uma insurreição de boa saúde.

Um dia a pintura de Van Gogh, armada da febre da boa saúde, retornará para arrojar ao vento o pó de um mundo enjaulado, que seu coração não pôde suportar.

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