Saturday, 1 October 2011

O CORPO E A ALMA DA ÍNDIA: O VEREDITO DE AYODHYA E O NOVO JAMN DO COMUNALISMO INDIANO

O CORPO E A ALMA DA ÍNDIA: O VEREDITO DE AYODHYA E O NOVO JAMN DO COMUNALISMO INDIANO


Introdução


Na tarde do dia 30 de setembro de 2010, a Corte de Allahabad (Hight Court of Allahabad) finalmente divulgou seu veredito sobre o direito de posse da área historicamente proclamada sagrada por Hinduístas e Muçulmanos, na cidade de Ayodhya, região de Uttar Pradesh. Marco na história do Comunalismo indiano, o julgamento foi anunciado após sete dias de adiamento consecutivos e decidiu em favor da tripartição da área entre duas facções Hindus e uma Muçulmana. Mais relevante, contudo, vem sendo o fato de que, até o momento, não houve relatos de atos violentos como os que mancharam de sangue a Índia em 1992 e 2002.


Histórico do caso

Em 1528 o primeiro Imperador Mughal a reinar sobre o território que hoje constitui a Índia, Imperador Babur (ou Babar), construiu a imensa Mesquita de Babri Masjid, numa área em que, posteriormente, membros da comunidade Hinduísta alegariam ter sido o local de nascimento de sua divindade “Lord Rama” (Lord Ram), há mais de 2500 anos atrás.

Por cerca de três séculos o status quo da região não sofreu contestações sensíveis, contudo, após dois séculos de colonização inglesa o poder Mughal já estava praticamente contido ao papel simbólico de principados espalhados pelo país – British Raj – e, por conseqüência, surgiu espaço para a contestação de várias instituições herdadas deste período. Neste cenário, a demanda pela construção de um templo para Lord Ram foi tornando contornos mais concretos entre 1840 e 1949, quando os constantes protestos levaram o governo local a declarar esta uma região contestada e, para evitar confrontos, proibir o acesso à área.

Por trás do recrudescimento que marcou os protestos de 1940 estava o debate sobre uma independência que já se encaminhava para acontecer e, portanto, inseria a sociedade numa discussão sobre o formato do país a ser construído. Dentre as diversas correntes de idéias que marcaram esse período, as demandas sobre a área de Babri Masjid foram um reflexo imediato do Ram-rajyia, um modelo social descrito nos textos Hinduístas que Mohandas Ghandi popularizou e que, conforme Hardgrave e Kochanek definem, seria um esforço pela restauração do reino ideal dos tempos de Lord Rama.

Após a independência, em 1948, o ideal hindu-nacionalista, apropriando-se da ideia do Ram-rajyia, assim como diversos outros projetos nacionais-religiosos, vindos de Sikhs, Muçulmanos, Budistas e outras religiões expressivas no sub-continente Indiano, foram juridicamente contidas por uma constituição federativa e secular. No campo político, essas tendências foram freadas por aproximadamente 30 anos de dominação política do secular “Partido Congresso” (atualmente Indian National Congress), cerca de 20 dos quais foram obtidos por um sagaz jogo político (período da Hegemonia do Partido Congresso), e os demais ficaram a cargo da centralização de poderes exercida pela Primeira Ministra Indira Gandhi (período da Imposição do Partido Congresso).

Com o ruir da hegemonia do Partido Congresso e aproveitando-se dos ressentimentos locais gerados pela centralização imposta por Indira Gandhi, as idéias de nacionalismo-religioso recobraram força, sobretudo entre a maioria Hindu (cerca de 80% da população). Um reflexo imediato foi a ascensão de organizações e partidos hindu-nacionalistas que levaram a ideia do Ram-rajyia aos extremos do que muitos consideram um fascismo-hinduísta. Neste contexto, a organização hinduísta-nacionalista RSS (Rashtriya Swayamsevak Sangh), à qual pertencia o assassino de Mohandas Gandhi (Mahatma Gandhi), conseguiu dar proeminência nacional aos seus braços políticos: O Jana Sangh, existente desde 1951, que a partir de 1980 se desmembrou dando origem ao BJP (Bharatiya Janata Party); o VHP (Vishua Hindu Parishad), ainda mais extremista, fundado em 1964; dentre outros.

Além da esfera política tradicional, houve uma efusão de nacionalismo-hinduísta por parte de importantes setores sociais, os quais firmaram vínculos com a RSS. A televisão estatal, Doordashan, exibiu um seriado de 18 meses sobre o épico Ramayana, seguido por 91 semanas de exibição do Mahabharat. Ambos textos hinduístas que, conforme Arvind Rajagopal, foram filmados e exibidos como forma de propaganda do Ram-rajyia.

Respaldados pela transformação política após a morte de Indira Gandhi e a diminuição do poder do Partido Congresso, em 1984 o VHP tomou as demandas sobre a área de Babri Masjid como ponto chave de sua agenda e iniciou um movimento forte e institucionalizado para liberação do local em contestação para que se construísse o templo de Ramjanmabhoomi, em adoração à divindade Hinduísta Lord Rama.

Em 1986, sem autorizar a demolição de Babri Masjid, uma decisão do tribunal distrital definiu que os portões seriam reabertos para a peregrinação exclusiva de Hinduístas. Por trás desta decisão estava a denúncia de que, dentro da Mesquita, haveria algumas estátuas e ídolos Hindus, cujos Sunitas que reivindicam a área, porém, alegam terem sido colocadas após o trancamento dos portões em 1949, supostamente forjando as bases para a vitória judicial conquistada pelos Hinduístas.

Em repúdio, o Comitê de Ação Babri Masjid (Babri Masjid Action Comitee) articulou uma onda de protestos nacionais contra o impedimento de Muçulmanos entrarem no templo, o que culminou numa carreata de mais de 300.000 pessoas rumo a Nova Déli, em março de 1987. Um mês após, o VHP organizou uma contra-marcha, que mobilizou milhares de Hinduístas rumo a Nova Deli.

Às vésperas das eleições de 1989 e tendo experimentado um crescimento acelerado em função do envolvimento com a questão de Babri Masjid / Ramjanmabhoomi, o VHP resolveu ir mais além e, em 1989, lançou um movimento para demolir a Mesquita e, no lugar, construir seu templo Hinduísta. Na primeira de uma série de ações que gerariam ondas de violência, houve uma convocação nacional para que Hinduístas de todo o país se dirigissem a Ayodhya com um tijolo para “construir seu templo”. A despeito das medidas precatórias do governo central, a iniciativa gerou milhares de mortes. Cidades como Bhagalpur, na região de Bihar, tiveram entre 200 e 1000 casos de assassinatos em função da campanha do VHP, marcando este como o período, até então, mais violento do Comunalismo desde a independência.

Com as mesmas motivações políticas, o BJP também incorporou a demanda Hinduísta à sua agenda e, num gesto extremado, seu presidente, L. K. Advani, anunciou uma peregrinação de carruagem por 10.000 km que cruzaria o país e terminaria em Ayodhyia. Sua carruagem enfeitada com atributos Hinduístas anunciava chegar em Ayodhyia em 30 de outubro de 1990, seguida por uma multidão que ilegal e unilateralmente destruiria Babri Masjid e construiria Ramjanmabhoomi. Se adiantando às previsíveis conseqüências catastróficas deste ato, o governo central prendeu Advani e outros líderes do BJP no dia 23 de outubro, quando a multidão que o seguia já se aproximava da região de Uttar Pradesh. Como conseqüência houve um prolongado confronto entre manifestantes e polícias, bem como a emergência de violência entre Muçulmanos e Hinduístas, levando á morte de mais de 300 pessoas.

Politicamente a situação gerou uma instabilidade que, em função da oposição dos partidos ligados à RSS, levou à queda do Primeiro Ministro V. P. Singh, que se afastou após o Parlamento votar um “Voto de Não-confiança” (Vote of No Confidence).

Após as complicadas eleições de 1991 o BJP e o VHP declararam que, em dezembro de 1992, iriam construir o Ramjanmabhoomi no local em que estava a Mesquita. Intimidado pela queda de seu sucessor, o Primeiro Ministro Narasima Rao contentou-se com a evasiva promessa de que BJP e VHP não infringiriam o recente veredito que declarava a área como zona de contestação e proibia a entrada de ambos os contestantes.

Em dezembro de 1992 a força tarefa designada para proteger Babri Majid foi de reduzidos 15.000 “paramilitaries” (uma força policial intermediária entre a polícia tradicional e o exército que, a despeito do nome, é 100% constitucional e não possui relação com as associações criminosas às quais a Língua Portuguesa geralmente se refere por este nome). Quando a multidão de 200.000 militantes Hinduístas começou a invadir e depredar a Mesquita o efetivo policial nem mesmo esboçou resistência e, em poucas horas, a enorme construção de 500 anos fora reduzida a escombros. Nos seis dias seguintes houve uma onda de violência e choques entre manifestantes e policiais que levou à morte de 1200 pessoas, majoritariamente Muçulmanos.

Apesar dos faniquitos do Primeiro Ministro se dizendo traído pela nação, o fato é que a postura permissiva do Estado gerou uma crise nacional e internacional. O presidente dissolveu o Parlamento e declarou “President’s Rule”, uma espécie de estado de emergência que garante ao Presidente poderes supra-constitucionais, centraliza os poderes e restringe liberdades individuais, direitos civis e políticos. O Chief Minister de Uttar Pradesh, algo como o “Primeiro Ministro” em nível regional, pediu afastamento do cargo. A RSS, o VHP e as reminiscência do Barjrang Dal, bem como duas organizações extremistas islâmicas, o Jamaat-i-Islam e o Islamic Sevak Sangh, foram colocadas na ilegalidade por dois anos.

Internacionalmente o fato levou a um recrudescimento com o Paquistão e, em menor escala, Bangladesh, além de uma severa condenação emitida pelas 56 Estados da Conferência Islâmica e pela Arábia Saudita.

Guardada na memória popular e incitada por lideranças políticas, a herança de ódio e medo envolvendo esta contenda retomou seu lugar na história indiana no ano de 2002, quando um grupo de rebeldes muçulmanos ateou fogo em um trem que passara pela cidade de Godhra, região de Guajará, com peregrinos Hinduístas que retornavam de Ayodhia, em 27 de janeiro daquele ano. Tendo recebido vasta cobertura da mídia, este ataque, o primeiro televisionado na história da Índia, suscitou uma série de violações contra Muçulmanos, as quais se articularam com o apoio de importantes partidos e organizações sociais associados ao ideal hinduísta-nacionalista. Por mais de três dias houve uma completa derrocada da lei e da ordem, a qual só foi re-estabelecida com uma nova intervenção federal.

Desde então a articulação entre governos nacionais e locais evidenciou um relativo sucesso em isolar a área contestada enquanto, a partir de 2004, tramitava um novo julgamento do caso, agora pela Hight Court de Allahabad. Neste processo o veredito teria de esclarecer os direitos de posse sobre a região e, presumivelmente, lançar as diretrizes do futuro desta área. Num clima tenso, ambientado pelo medo histórico herdade de 1992 e 2002, além de outros agravantes, o veredito foi anunciado para o dia 23 de setembro de 2010, tendo sido sete vezes postergado diariamente e, finalmente, anunciando, no dia 30 de setembro, a tripartição da área entre 2 grupos Hinduístas e 1 Muçulmano (Sunita).

Comunalismo na Índia


Antes de analisarmos os efeitos imediatos deste caso sobre a política e sociedade indiana é necessário compreendermos o contexto que possibilitou a um litígio de propriedade abalar a ordem nacional por duas vezes, bem como os motivos pelos quais este último veredito trouxe tanta preocupação e medo.

Mais do que uma disputa por um terreno, o litígio de Babri Masjid / Ramjanmabhoomi é a expressão de uma organização social / ideologia que busca promover os interesses de parcelas da população presumivelmente em detrimento de outra, ou outras, ou mesmo da sociedade como um todo, usando a religião como instrumento de manipulação social. A este processo, marcado nos interstícios da sociedade e da política indiana, chama-se Comunalismo (Communalism). O Comunalismo é, portanto, a criação de identidades políticas baseadas em identidades religiosas que são manipuladas por meio do dogmatismo extremado, o qual, por conseqüência, estende à política o antagonismo inconciliável de interesses entre duas ou mais comunidades religiosas.

Por estas razões e em face das expressões práticas do Comunalismo, associadas a levantes semelhantes ao de Babri Masjid e mesmo a algumas causas do separatismo Paquistanês, o primeiro Primeiro Ministro Indiano, Jawahar lal Nehru, peça chave na conquista da independência e um dos principais nomes da democracia indiana em seus primórdios, afirmou que a maior ameaça à Índia não seria nenhuma ameaça externa, mas sim a instituição do Comunalismo.

O Comunalismo prevê a existência unitária de uma ou outra comunidade religiosa, sobre a qual reside o universo das ações e ambições dos atores políticos. Dessa forma, o ethos Comunalista se foca em categorias religiosas específicas toda a sua atenção, e ambiciona direcionar também a totalidade da política nacional para este palco em que a religião, e não a nação ou o Estado, emerge como fruto de uma aceitação religiosa que se sobrepõe ao contrato social.

No caso particular da Índia, o Comunalismo é um claro atentado aos esforços nacionalistas que se pautam pelos valores da multietnicidade, multireligiosidade e das diversas comunidades lingüísticas. Contrariamente à proposta constitucional de enfrentar a pluralidade interna por meio da agregação e do envolvimento, o Comunalismo aponta no sentido da rivalização e da imposição.

Apesar de seus vínculos com a religião, porém, o Comunalismo não pode ser diagnosticado como uma conseqüência direta da religiosidade ou mesmo da co-existência de distintos valores. Prova disso é o fato de que o Comunalismo é um fenômeno estritamente moderno que, por exemplo, não se observa no passado medieval indiano – Ayuveda –, ou mesmo durante o auge do Império Moghul. Com suas raízes cravadas na política colonial britânica de fomento dos ódios internos e balcanização do cenário colonial, esta forma particular de se internalizar os extremismos religiosos na política deve ser interpretada como uma resposta sectária, restritiva e juridicamente negativa ao processo de modernização e construção do Estado-Nação-Moderno na Índia do Raj Britânico em diante.

Assim como não há dúvida de que as instituições do Comunalismo foram forjadas sob a tutela da Companhia das Índias, pode-se dizer que o combustível que alimenta esse câncer foi também trazido pelas caravelas britânicas. Num discurso histórico sobre Comunalismo, Jawahar lal Nehru descreveu o Comunalismo como a versão indiana do fascismo. De acordo com ele, o Comunalismo estaria cravado no seio das minorias em função do medo, enquanto seu berço entre as maiorias seria a reação política. Se a reação política das maiorias é um reflexo das características geopolíticas da Índia, com uma formação demográfica absurdamente desigual, a fonte do medo no outro extremo deste ciclo foi uma conseqüência direta do “Holocausto Comunal” induzido pela metrópole britânica. Mais valioso que descobrir qual destes elementos surgiu primeiro é, portanto, notar que, ao menos um deles foi criado pelos colonizadores, trazendo uma variável que, propositiva ou reativa, invariavelmente mudou a percepção social sobre as possibilidades de convivência multireligiosa.

Por esses fatores, muitos analistas pontuam que a ascensão do Comunalismo a partir do Raj Britânico foi menos uma conseqüência da religiosidade e da cultura do que da presença de forças não-religiosas e não-culturais operando nos sistemas políticos e econômicos que se construíam. Moin Shakir aponta que as principais organizações políticas a emergirem com a independência mantêm as massas ignorantes das realidades e demandas / oportunidades da era moderna.

Como evidência deste fato podemos tomar, por exemplo, a separação do Paquistão como um evento que vai muito além da perda territorial e, na verdade, sacramenta as bases do Comunalismo entre Muçulmanos e Hinduístas, que em função deste evento solidificaram o seus sentimentos de “medo” e “reação” no corpo de intolerantes partidos políticos.

Outra expressão do Comunalismo pode ser observada na indústria cultural e midiática que sofre uma visível interferência do Comunalismo. Alguns jornais de grande circulação, como o Akali Patrika, o Sabat e o Organizer funcionam como filtros à informação política não relacionada ao Comunalismo. Mesmo a historiografia nacional é motivo de contenda, sendo estritamente dividida e exageradamente tendenciosa, como se observa no caso dos historiadores Muçulmanos, Allaudin Khiji, Mahmud Ghanznavi, Auranzeb, dentre outros.

Politicamente a força de partidos declaradamente Comunalistas, como o Hindu Mahasabha (Hinduista), Muslim League (Muçulmano) e o Akali Dal (Sikh), dentre outros, dão uma noção de como a realidade de Ayodhyia é apenas um esboço do quadro geral observado na Índia.

Um último elemento importante a ser destacado sobre o Comunalismo indiano diz respeito à expressão econômica desse fenômeno. Funcionando como variável interveniente, a economia tanto ajuda a compreender os desníveis entre diferentes grupos, quanto demonstra as formas como esta estrutura trabalha para se imortalizar na realidade indiana. No caso do Comunalismo entre Hinduístas e Muçulmanos, no qual se insere o Veredito de Ayodhyia, observa-se que ao longo da colonização britânica houve um acesso desigual entre Hinduístas e Muçulmanos ao modelo educacional moderno. Conquanto haja um intenso debate sobre a intencionalidade deste acesso desigual ou a mera refuta dos Muçulmanos a abandonarem suas instituições, assentadas no status quo do Império Moghul, o fato é que no imediato pós-independência houve uma clara inadequação da instrução Muçulmana com a estrutura moderna que deu forma ao Estado Indiano. Por conseguinte, verificou-se uma inferioridade na qualidade de vida de Muçulmanos que potencializou o elemento de medo da dinâmica Comunalista. Em decorrência deste fato, portanto, muitos analistas pontuam que os eventos de 1992 foram o reflexo social de uma desigualdade econômica que vem sendo corrigida pelo governo desde a independência.

As expectativas para o veredito


A partir da ótica econômica, citada acima, as expectativas para o Veredito de 2010 eram otimistas e apontavam, mais do que na direção de uma positivação jurídica da questão, na direção de uma sociedade mais madura e capaz de aceitar a prevalência dos valores nacionais sobre ranços Comunalistas. Para muitos analistas o anúncio do veredito de 2010 seria menos importante por seu conteúdo e mais relevante pela forma como a sociedade reagiria a ele. Simplificadamente, uma reação não violenta seria a expressão de relativo sucesso das políticas de inclusão social que buscam reduzir os desníveis econômicos e políticos entre os diferentes setores sociais. Na mesma interpretação, um cenário pacífico também demonstraria o crescimento de importância das instituições jurídicas junto à sociedade indiana.

A despeito destas expectativas, porém, o anúncio do veredito sucedeu um clima extremamente tenso que envolveu a sociedade Indiana. Acima de tudo houve um medo generalizado por parte da população. As páginas de jornais do dia 30 de setembro estampavam fotos de ruas vazias em locais que geralmente são hiper-movimentados. A maioria das escolas e estabelecimentos públicos não funcionou no dia 29 e boa parte dos estabelecimentos privados encerraram seu expediente às 14:00 horas, pois esperava-se um anúncio a partir das 15:00.

Há dias os jornais vinham estampando pedidos da Presidente e do Primeiro Ministro clamando por paz. Em Nova Deli no início da semana houve uma imensa passeata fazendo vigília noturna para conscientizar a população da necessidade de receber o anúncio do julgamento de forma pacífica. As televisões que, atendendo a um “pedido mais do que especial” feito diretamente pelo Primeiro Ministro, evitaram polarizar o clima antes do anúncio e subitamente perderam seus sinais na hora estabelecida para a transmissão, só recobrando sua programação horas depois. Neste intervalo a população indiana assistia atenta e temerosa a mensagens de paz e unidade nacional televisionadas pelo sistema de emergência nacional. Sistema este que, aliás, anunciou recentemente ter preparado uma série de exibições que seriam colocados no ar caso houvesse algum problema mais grave.

Tão logo as TV’s recobraram seus sinais o Primeiro Ministro, Manmohan Singh, foi ao ar duas vezes numa mesma noite pedindo paz e exortando a população a colocar o respeito pelas instituições democráticas nacionais acima de qualquer outro sentimento.

Na manhã do dia 30 os principais pontos turísticos tiveram abundantes reforços policiais. Ayodhyia foi tomada por praticamente todos os oficiais de campo da polícia provincial – Provincial Armed Constambulary (PAC) –, em adição às 20 Companhias da força intermediária entre exército e polícia – Central Paramilitary Forces (CPF). Ao longo de todo o país as forças militares e policiais que não estavam na rua ficaram nos quartéis de prontidão, enquanto a Força Aérea estava preparada para uma mobilização de emergência.

Como se não fosse o bastante, todo esse cenário se prolongou por sete dias além do prazo inicialmente anunciado para divulgação do veredito. Sem dar muita explicação, o Conselho Especial, composto por três juízes, simplesmente postergou o anúncio por sete vezes seguidas. Muitos acreditam, ou acreditaram à época, que tratava-se de uma manobra para ganhar tempo e só anunciar a decisão após os Commonwealth Games. Coincidência ou não, o fato é que Deli estava lotada de turistas e delegações esportivas que vieram para a realização dos Commonweath Games, ocorrendo no intercurso de duas semanas. Se as medidas para impressionar os visitantes chegaram ao extremo de proibir o trânsito de cidadãos em determinadas rodovias, parar a atividade de colégios e burocracias públicas e até mesmo o absurdo cobrir as diversas favelas da cidade com imensos pôsteres de boas-vindas, então talvez essa de fato tenha sido uma das explicações para a demora.

Anunciado o veredito, contudo, houve uma compreensão de que este tempo talvez tivesse sido necessário para se organizar o palco de guerra que se armou como precaução a uma reação violenta por parte de setores da sociedade. Da parte dos juízes, porém, nega-se qualquer motivação política para o atraso que, supostamente, foi necessário para concluir alguns detalhes.


O veredito


Sobre as causas políticas do atraso, pode-se fazer pouco mais do que especular. O veredito, contudo, foi uma prova inegável do comprometimento político do julgamento. Em suas 8189 páginas estabeleceu-se que os 2,77 acres em disputa serão repartidos entre duas facções Hinduístas e o conselho Sunita que comandava a Mesquita até 1992, sendo que a área propriamente em disputa, ou seja, o local onde originalmente ficava o edifício, ficará sob domínio Hinduísta.

Baseando a decisão na consideração de que “o local de nascimento é a pessoa jurídica de uma divindade” a Corte acolheu o parecer do Archeological Survey of India (ASI) atestando que no século 12 D.C o local servira de templo para Lord Ram, supostamente nascido lá.

A historiadora Romila Thapar, especialista em História Antiga da Índia, pontua que os argumentos históricos aventados no veredito são absolutamente inconsistentes para se contraporem a um templo que existiu pelos últimos 500 anos até ser destruído por levas que ainda estão impunes. Segundo ela o relatório do ASI é extremamente enviesado, estando sob contestação por parte de diversos arqueólogos. Ademais, ela lembra que, de maneira geral, qualquer evidência arqueológica é insuficiente para servir de carro chefe a um veredito jurídico, pois as divergências sempre existem.

Também se deve notar que o argumento jurídico favorável à construção do templo Hinduísta se esquece totalmente de mencionar os vínculos entre a destruição criminosa de Babri Masjid há 18 anos e os demandantes Hinduístas no processo. Curioso como um contestado parecer arqueológico sobre a existência de um edifício no século 12 D.C. afeta a legitimidade dos Muçulmanos que construíram sua Mesquita há 500 anos, enquanto os direitos Hinduístas não foram sequer arranhados pelo ato criminoso recentemente cometido.

Nitidamente, o que se buscou com esse veredito foi não suscitar uma nova onda de protestos violentos. Qualquer decisão favorável aos Muçulmanos colocaria a ordem social na corda bamba das maiorias Hindus e suas lideranças fascistas. Uma decisão inteiramente favorável aos Hinduístas, por sua vez, explicitaria de vez a inviabilidade do secularismo constitucional diante de um cenário político social dominado pelo Comunalismo hinduísta. Assim escolheu-se a opção de agradar o mais forte e oferecer um consolo ao outro, o que, se não gerou satisfação, pelo menos evitou um possível derramamento de sangue.

Sem entrar no mérito dessa análise política, o fato é que uma decisão nestes termos atenta contra o princípio da separação dos poderes e fere a autonomia do legislativo. Ademais, o reconhecimento de que “o local de nascimento é uma pessoa jurídica e uma divindade” abre um precedente que pode levar ao descaminho do sistema jurídico secular rumo a uma lei Hinduísta ou, pelo menos, influenciável por dogmas religiosos. Ao colocar em mais alta estima o direito de propriedade em função de um mito religioso do que as indiscutíveis evidências concretas da propriedade Muçulmana sobre o terreno nos últimos anos, a Corte abre um precedente para que novos direitos de propriedade sejam questionados com base em mitos religiosos. Desta forma não é insensato pensarmos que, por exemplo, uma propriedade legalmente constituída possa vir a ser expropriada em função alegações do valor religioso do bem para um determinado grupo de crentes.

Esta prerrogativa fere o secularismo constitucional de forma ainda mais intensa dadas as especificidades do caso Indiano, em que a predominância política da maioria Hinduísta soma-se ao imenso e variável número de divindades desta fé. Com mais de 44.000.000 mil divindades o Hinduísmo pode servir de pano de fundo para contestações de diversas propriedades sem esgotar seu arcabouço imagético. Numa situação hipotética e exagerada, o Hinduísmo bem poderia contestar, por exemplo, a propriedade de uma casa privada alegando ser um local sagrado do ‘Deus A’ e, ainda assim, ter um alfabeto inteiro de Deuses para eventualmente contestar outras casas. Obviamente que o exemplo dado foi grosseiro e exagerado, contudo, a própria história indiana mostra que, num grau menos visível envolvendo litígios menos importantes, embora não menos nocivos, esta é uma prática existente. Resta agora o temor de que o veredito de Ayodhyia estimule ainda mais casos como este. Se os absurdos clamores da RSS alegando que “todas as mesquitas na Índia foram construídas sobre templos Hinduístas” já eram preocupantes antes, agora resta ver como o sistema jurídico indiano vai impedir que a brecha de Babri Masjid se alargue ainda mais


As conseqüências imediatas


Uma conseqüência imediata, que vem sendo considerada o maior mérito do veredito, foi a manutenção da paz e da ordem. Os principais meio de notícia não mencionaram se quer um caso de violência Comunalista associada ao julgamento. As declarações por parte das principais lideranças políticas mantiveram um tom comedido e, ainda que críticos, sempre resilientes e enfatizando a prioridade de se manter a unidade nacional.

Contudo, essa ordem após o julgamento tem um que de abstrata, pois, a bem da verdade, o julgamento já era contestado antes mesmo de ser emitido. Tendo ainda como recorrer à Suprema Corte, ambas as partes já enfatizavam que qualquer decisão que não lhes agradece seria contestada no foro máximo do sistema judiciário indiano. Ademais, ainda é cedo para avaliar a resiliência das partes, afinal, o destrancamento dos portões e a construção de um templo Hindu ainda devem aguardar um demorado processo burocrático possivelmente a depender de voto favorável da Suprema Corte.

Na conflagração de um novo cenário de medo, ambas as partes demonstram-se insatisfeitas com o julgamento atual, o que se expressa pelo fato de que os encaminhamentos à Suprema Corte foram feitos tanto por Muçulmanos quanto por Hinduístas que, afinal, não desejam partir nenhuma porção da área contestada.

Ademais, Hinduístas radicais ligados ao RSS e mesmo representantes da parte Hinduísta no processo já falam da construção do templo como se esta fosse uma certeza, chagando mesmo a preparar canteiros de obra nos limites da propriedade e a exortar os Muçulmanos a abdicarem seu direito sobre parte da propriedade. Estas exortações, a propósito, vêm sendo feitas num tom quase ameaçador, sobretudo quando as partes Hinduístas mencionam eventuais desconfortos que uma persistência Muçulmana no litígio pode causar.

De forma menos clara, também se observa um efeito desse litígio sobre uma região onde o Comunalismo entre Muçulmanos e Hinduístas é bem mais tensa; a Cachemira (Jamuu and Kashmir). Ainda muito recente para ter seus contornos claramente delineados, o fato é que logo após o julgamento de Ayodhya houve um recrudescimento por parte de grupos rebeldes separatistas da Cachemira, levando à dissolução do plano de retirada das tropas que ocupam o estado por mais de dez anos.


Conclusão


Embora o recrudescimento na região da Cachemira certamente tenha outras causas, o fato é que a hipótese do julgamento de Ayodhya ter influenciado o retrocesso nas negociações com o estado rebelde não é de todo implausível. Sob essa hipótese, o que se observa seria, portanto, uma expressão reativa de grupos Muçulmanos diante do fato de não se sentirem verdadeiramente indianos, ou, pelo menos, de não se sentirem verdadeiros cidadãos indianos.

Num estado multiétnico, multireligioso, multilinguístico e continental como a Índia, o federalismo constitucional definitivamente não reflete o movimento de forças centrípetas que faz da unidade indiana o maior desafio e, ao mesmo tempo, a maior prova da força deste jovem estado. Diante deste fato, é previsível que a reação Muçulmana ao longo do país não tome o formato histórico da violência na Cachemira, porém, isso não anula o fato de que o sentimento nacionalista morre aos poucos quando o Estado se traveste de oligarquia para convenientemente evadir-se de suas obrigações. É certo que, com ou sem reação violência, a Índia perde um pouco mais de si a cada Muçulmano cabisbaixo que segue vivendo como um estrangeiro ou um apátrida em seu próprio país.

Das tribos originarias ao Estado Indiano pós-Independência, passando pelos tempos Ayuvedicos, Hindu-Arianos, os Califados, o Império Moghul, e o Raj Britânico... Se tomarmos a história da sociedade indiana sob a óptica do Hinduísmo podemos dizer que as diversas vidas desse corpo social são como os Jamns do Hinduísmo, sempre morrendo e sempre revivendo sobre novos corpos, novas chances de enfrentar o destino com a dignidade de quem é capaz de mudá-lo para idealmente encontrar seu Mokshe. Se assim o for, é bom que o Estado indiano seja prudente com essa questão, pois do contrário pode esvaziar-se de sua unidade e morrer para renascer sob o Dharma do fascismo de Estado e do ódio legislado, emprestado suas históricas raízes culturais ao pior da modernidade que lhe foi imposta.



Originally published at: http://boletimneasia.wordpress.com/2011/08/02/boletim-do-neasia-n%C2%BA-83/



Friday, 12 August 2011

100 Anos de Solidão

E nessa bagunça de Aurelianos e Josés, acho que já nem sei quem sou...

Talvez,

na confusão das covas,

o destino venha a corrigir seu erro ao me dar a vida.


Até lá, o jeito que há é continuar vivendo

com a certeza de não ser o primeiro,

e a dor de não ser o último


bem no meio dessa estirpe marcada

a cem anos de solidão.


Monday, 8 August 2011

CAFÉ

Sempre odiei café,

nunca vi graça naquele copinho de pretume e cheiro forte

não me fazia sentido sentir o gosto do quente


mas hoje,

de repente,

o diabo do pretinho me chamou com força

e quando menos notei estava num shopping de madame,

ouvindo uma bossa que nunca foi o meu forte,

lendo pra esquecer das fraquezas,

e me afogando naquela negridão dos infernos,

...

que me lembrava o lar,

e descia quente esfriando um pouco do calor que me consumia.


Eu precisava daquele gole pra não me afogar pra sempre,

naquele gosto que odeio encontrei um prazer que achava ter perdido

por ai


Enquanto me sentia forte naquela poltrona,

sentia o cheiro de café moído,

e bebia

sem açúcar

aquele pretinho feio,

e não entendia

porque estava feliz

...

e o Poetinha

me dizia,

que pra fazer um samba com beleza,

era preciso um bocado de tristeza,

e que é melhor ser alegre que ser triste,

que a alegria é a melhor coisa que existe.


E justo hoje,

que eu queria tanto fazer um samba,

acabei aprontando poesia.

Friday, 5 August 2011

O Inferno de P.

Ele chegara reclamando do calor,

choveu.

Pela noite até bateu um vento gostoso.

Inútil

(…)

a chama que lhe consumia

não vinha de fora


Seria mais uma noite de peito quente

mais uma noite de sonhos queimados


(…)


quem dera não sonhasse tanto,

e a falta de sonhos o matasse

por inanição

- Aquele inferno que se apoderava dele


“Sem saber ao certo como, talvez por estar sonolento, perdeu-se em uma selva sombria”.


Suas pegadas não indicavam direção,

apenas faziam ler em seus olhos

que a esperança

dali em diante

não teria

vez.


“Deixai toda esperança, ó vós que entrais”.


O inferno dos outros ganhava espaço em seu ser

e atravessá-lo agora seria uma tarefa solitária,

para o deleite de sua Beatriz perversa

pantagruélica pelo gozo

de um Virgílio que guardava dentro de si,

(...)

fundo no limbo de suas carnes

quentes

o suficiente

para transformar o Cocite em termas.



Wednesday, 20 July 2011

VAN GOGH: O SUICIDADO PELA SOCIEDADE

Recentemente sinto um desconforto incontrolável, e um desespero assombroso me toma de assalto toda vez que busco as razões de minha inquietação sem jamais me aproximar de uma resposta. A arte, como sempre, surge como amiga fiel nestas horas. Verdugo de minha sanidade, esta forma sincera de sentir não me trás o conforto do álcool ou a satisfação do gozo. Pelo golpe da arte ressurge em mim um híbrido de dor e medo, de pesar e terror, de espanto e admiração... e na sublime junção destes elementos sinto em mim revigorada a aura.

Não tenho bem certeza do que fazer com esta energia, tampouco acredito que a posse de uma aura faça de mim alguém bem vindo no mundo dos que me cercam... mas o fato é que, além de uma obra inspiradora, Van Gogh legou à humanidade uma vida dedicada à essência do que sentia, uma verdadeira lição que me motiva a enterrar-me cada vez mais fundo neste universo que surge dentro de mim para corroer a podridão da sociedade, ou ao menos livrar-me dela.

Abaixo segue uma seleção de trechos da obra de Antonin Artaud sobre a vida e obra de Van Gogh.

Relendo este pequeno livrinho que há muito tempo ganhei de um amigo, tomei o cuidado de posicionar junto a cada trecho um quadro de Van Gogh que diz com a alma o que Artaud busca extrair das palavras.



Os corvos pintados por ele, dois dias antes da sua morte, não lhe abriram as portas de certa glória póstuma, como tampouco o fizeram suas demais telas, mas abrem para a pintura pintada, ou melhor, para a natureza não-pintada, a porta oculta de um futuro possível, de uma permanente realidade possível através da porta aberta por van Gogh para um enigmático e pavoroso além.

Não é comum ver um homem, com o balaço que o matou já no seu ventre, povoar uma tela de corvos negros sobre uma espécie de campo talvez lívido, em todo caso vazio, no qual a cor de borra de vinho da terra se confronta violentamente com o amarelo sujo do trigo.

Mas nenhum outro pintor além de van Gogh teria achado, como ele o fez para pintar seus corvos, esse negro de trufa, esse negro de “banquete faustoso”e, ao mesmo, tempo, como que excremencial das asas dos corvos surpreendidos pelo resplendor declinante do crepúsculo.

E do que se queixa a terra sob as asas dos faustosos corvos, sem dúvida faustosos só para van Gogh, e ainda mais, suntuosos augúrio de um mal que já não lhe concerne?

Pois ninguém, até então, havia conseguido converter a terra nesse trapo sujo empapado de vinho e sangue. O céu do quadro é muito baixo, aplastrado,violáceo como as margens do raio. A insólita franja tenebrosa do vazio que se ergue atrás do relâmpago. Van Gogh soltou seus corvos, como se fossem os micróbios negros do seu baço de suicida, a poucos centímetros do alto e como se viessem por baixo da tela, seguindo o negro talho da linha onde o bater da sua soberba plumagem acrescenta ao turbilhão da tormenta terrestre as ameaças de uma sufocação vinda do alto. E contudo o quadro é soberbo. Soberbo, suntuoso e sereno quadro. Digno acompanhamento para a morte daquele que em vida fez girarem tantos sóis ébrios sobre tantos montões de feno rebeldes e que, desesperado,com um balaço no ventre, não poderia deixar de inundar com sangue e vinho uma paisagem, empapando a terra com uma última emulsão, radiante e tenebrosa, com sabor de vinho azedo e vinagre talhado. Pois esse é o tom da última tela pintada por van Gogh, que nunca ultrapassou os limites da pintura e evoca os acordes bárbaros e abruptos do mais patético, passional e apaixonado drama isabelino.

É isso o que mais me surpreende em Van Gogh, o mais pintor de todos os pintores e aquele que, sem afastar-se do que chamamos de pintura, sem sair dos limites do tubo, do pincel, do enquadramento do tema e da tela, sem recorrer à anedota, ao relato, ao drama, à profusa ação de imagens, à beleza intrínseca do assunto, conseguiu imbuir a natureza e os objetos de tamanha paixão que qualquer conto fabuloso de Edgar Poe, Herman Melville, Nathanael Haworthone, Gérard de Nerval, Achim von Arnim ou Hoffmann em nada superam, no plano psicológico e dramático, suas modestas telas, telas que, por outro lado, são quase todas de reduzidas dimensões, como se respondessem a um propósito deliberado (...)



(...)

"Uma lamparina sobre uma cadeira, um sofá de palha verde trançada,um livro no sofá e está revelado o drama. Quem vai entrar? Será Gaughin ou algum outro fantasma?A lamparina acesa sobre a cadeira de palha verde indica, ao que parece, alinha de demarcação luminosa que separa as duas individualidades antagônicas de van Gogh e Gaughin.

Relatado, o motivo estético da sua divergência talvez não ofereça um grande interesse, mas serve para indicar a profunda divisão humana entre os temperamentos de van Gogh e Gauguin. Penso que Gauguin achava que o artista deveria buscar o símbolo, o mito, ampliar as coisas da vida até o mito, enquanto van Gogh achava que é preciso deduzir o mito das coisas mais modestas da vida. De minha parte, penso que tinha absoluta razão. Pois a realidade é tremendamente superior a qualquer história, a qualquer fábula, a qualquer divindade, a qualquer super-realidade. Basta ter o gênio para saber interpretá-la." (...)


(...)

"O fardo de pintar sem saber por quê ou para quê. Pois não é para este mundo, nunca é para esta terra onde todos, desde sempre, trabalhamos, lutamos, uivando de horror, de fome, miséria, ódio, escândalo e nojo e onde fomos todos envenenados, embora com tudo isso tenhamos sido enfeitiçados e finalmente nos suicidamos como se não fôssemos todos, como o pobre van Gogh, suicidados pela sociedade!" (...)



(...)

"Não preciso interrogar a Grande Pitonista para que ela me diga de quantas supremas obras primas a pintura teria se enriquecido se Van Gogh não tivesse morrido aos trinta e sete anos, pois não consigo acreditar que depois dos corvos, Van Gogh viesse a pintar algum outro quadro. Creio que morreu aos trinta e sete anos porque já havia, desgraçadamente, chegado ao término da sua fúnebre e revoltante história de indivíduo sufocado por um espírito maléfico.

Pois não foi por si próprio, por causa de sua própria loucura, que Van Gogh abandonou a vida.

Foi pela pressão, dois dias antes de sua morte, desse espírito maléfico que se chamava doutor Gachet, psiquiatra improvisado e causa direta, eficaz e suficiente da sua morte.

Lendo as cartas de Van Gogh a seu irmão cheguei à firme e sincera convicção de que o doutor Gachet, “psiquiatra”, na verdade detestava Van Gogh, pintor; detestava-o como pintor, e acima de tudo como gênio.

É quase impossível ser ao mesmo tempo médico e homem honrado, mas é vergonhosamente impossível ser psiquiatra sem estar ao mesmo tempo marcado a fogo pela mais indiscutível insanidade: a de não poder lutar contra esse velho reflexo atávico da multidão, que converte qualquer homem de ciência, aprisionado na turba, numa espécie de inimigo nato e inato de todo gênio.

A medicina nasceu do mal, se é que não nasceu da doença e não provocou, pelo contrário, a doença para assistir ter uma razão de ser; mas a psiquiatria nasceu da multidão vulgar de pessoas que quiseram preservar o mal como fonte da doença e que assim produziram do seu próprio nada uma espécie de Guarda Suiça para extirpar na raiz o espírito de rebelião reivindicatória que está na origem de todo gênio.

Em todo alienado existe um gênio não compreendido, cujas ideias, brilhando na sua cabeça, apavoram as pessoas e que somente pode encontrar no delírio uma fuga às opressões que a vida lhe preparou." (...)


(...)

"E o rei Van Gogh incubava sonolento o próximo alarma da insurreição da saúde.

Como?

Pelo fato de que a boa saúde é uma abundância de endemias encurraladas, de um formidável desejo de vida com cem chagas corroídas que, apesar de tudo, é preciso fazer viver.

Aquele que esfumaça a bomba no cozimento e a vertigem não merece estar vivo

Este é o bálsamo que o pobre Van Gogh considerou como dever de manifestar na forma de deflagrações.

Mas o mal que o preocupava lhe fez mal.

O turco do rosto honrado aproximou-se de Van Gogh para extrair-lhe sua amêndoa confeitada, com o objetivo de separar o confeito (natural) que nela se formava.

E Van Gogh consumiu ali mil de seus verões.

Por isso morreu aos 37 anos, antes de viver, pois todos os macacos se alimentaram antes dele das forças que chegou a reunir; forças essas que agora devem ser devolvidas, para que seja possível o renascimento de Van Gogh.

Frente a humanidade de macacos covardes e cachorros molhados, a pintura de Van Gogh demonstrará ter pertencido a um tempo em que não houve alma, nem espírito, nem consciência, nem pensamento; mas tão somente elementos primitivos, alternativamente encadeados e desencadeados.

Paisagens de intensas convulsões, de traumatismos enlouquecidos, como os de um corpo que a febre atormenta para restituir sua perfeita saúde. Por baixo da pele o corpo é uma usina requentada, e por fora o doente brilha , reluz, por todos os seus poros, escancarados , como uma paisagem de Van Gogh na metade do dia.



Apenas uma guerra perpétua explica uma paz que é unicamente trânsito, como o leite a ponto de esparramar explica a caçarola onde ferve.

Desconfiem das formosas paisagens de Van Gogh, revolucionadas e plácidas, crispadas e contidas.

Representam a saúde entre dois acessos de uma insurreição de boa saúde.

Um dia a pintura de Van Gogh, armada da febre da boa saúde, retornará para arrojar ao vento o pó de um mundo enjaulado, que seu coração não pôde suportar.

Wednesday, 6 July 2011

Carta aberta em solidariedade à Universidade de Brasília

Carta aberta em solidariedade à Universidade de Brasília, em repúdio à reportagem “Madraçal no Planalto”, em repúdio à conduta jornalística do Sr. Gustavo Ribeiro e em repúdio à conduta jornalística da Revista VEJA.


Por Pedro Lara de Arruda, Mestrando em Relações Internacionais pela Universidade Indiana Jawahar lal Nehru (JNU), pesquisador do Centro Argentino de Estudios Internacionales (CAEI), pesquisador do Laboratório de Estudos da Ásia – USP (LEA – USP), pesquisador Jr. do Laboratório de Estudos Asiáticos da UnB.




Não fosse a precaríssima técnica jornalística, de escrita pobre e astúcia miúda, o sr. Gustavo Ribeiro bem poderia ser comparado a um outro jornalista de moral bestial e esquiva. Entre 1933 e 1945 Joseph Goebbels assumira a frente da propaganda Nazista, usando seu talento jornalístico para confundir, iludir, enganar e expiar a culpa de uma nação prestes a cometer a maior atrocidade da história. Em matéria publicada no último dia 04 de julho, o jovem Sr. Gustavo Ribeiro empurrou sua falta de talento aos limites e tentou recriar a propaganda autoritária sob o disfarce do jornalismo. Seu erro, porém, foi a escolha infeliz de um dos ambientes mais críticos, engajados e competentes deste país para a encenação de seu jornalismo amestrado (parafraseando aqui uma expressão que o próprio autor utilizou em uma de suas reportagens de caça ao PT).


Mesmo que sua fantasia travestida de jornalismo não tivesse falhas tão amadoras, como um claro maniqueísmo na exibição das imagens fotográficas; uma crítica arquitetada apenas pela ótica dos que se coadunam com sua visão (ou melhor seria dizer miopia?); e um sem número de referências a autoridades vagas e carentes de fontes claras (como no casos dos 'especialistas' e outras categorias míticas que ele prefere não nomear na construção de sua crítica inventada)... ainda assim a Universidade de Brasília contaría, como vem contando, com a voz dos mais distintos setores sociais para fazer saber a qualquer leitor suficientemente interessado que esta universidade histórica não retrocedeu 1 cm se quer em sua jornada rumo ao ensino de excelência e à inserção de seus agentes num debate político justo, plural, transparente e participativo. Por mais bem mascarado que tivesse sido o tendenciosismo na reportagem, ainda assim os procedimentos internos da universidade e a história de seu cumprimento serviriam de base para que os mais capacitados profissionais pudessem detectar na notícia o vírus do mau-caratismo e da má-fé.


A reação imediata da sociedade fez saber e deixou claro que as alegadas perseguições jamais poderiam ter ocorrido dentro do sistema administrativo da universidade, tampouco que o Professor José Geraldo tenha histórico ou interesses concretos que pudessem levá-lo a tanto. Vistas caso a caso, todas as alegações da reportagem se mostraram levianas e suas supostas vítimas revelaram-se símples descontentes cujas incapacidades pessoais as conduziram à perda de espaço acadêmico. Uma prova empírica de que a meritocracia, e não os editoriais da mídia corporativa ou qualquer outra forma de influência não-declarada, ainda são o norte desta universidade.


Sem repetir as minúcias que revelam a falsidade das informações da reportagem em questão, sinto-me obrigado a expressar por meio desta carta meu repúdio a esta instituição odiosa e criminosa que é a revista Veja. Nascida em pleno regime militar, a mesma revista que dedicou seis de suas primeiras edições a falar do “Monstro do Lago Ness” e seguiu esse mesmo editorial alienante e canalha até o fim da Ditadura, a revista veja decidiu que a caça ao PT despertaria mais o apetite de seus leitores que histórias mirabolantes e fantasmagóricas.


Nos últimos anos a revista concedeu ao PT o monopólio da corrupção nacional, publicou quase que exclusivamente matérias anti-petistas e usou o sensacionalismo para muitas vezes lograr sucesso em sobrepor-se às instituições nacionais. Diversos foram os casos em que a Veja passou à frente dos processos executivos, legislativos e judiciários fazendo da desinformação em massa seu instrumento para cooptação das instituições brasileiras. Acostumada a usar a debilidade das instituições para sobrepor-se a elas próprias, a revista Veja obteve considerável sucesso ao usar a corrupção generalizada para controlar o legislativo, o executivo e o judiciário. Na inércia dos gananciosos, porém, esta inimiga do povo precipitou-se sobre uma instituição sadia, onde o jornalismo verminoso da Veja não encontrou a podridão típica em que se prolifera.


Confortável o suficiente para reportar ficção em tempos de chumbo, a Veja parece ter se inquietado com o fato de o atual Reitor da UnB ser vinculado ao seu vilão predileto – o PT. Apontando para a reportagem um yuppie ignorante o suficiente para ignorar os limites das preferências individuais do Reitor sobre os destinos da Universidade, o propósito desta revista inimiga do povo foi o de desacreditar toda uma instituição como forma de ferir seu representante máximo. Além de egoísta por não considerar o universo de agentes possivelmente feridos com este golpe descontrolado, a revista Veja foi também ordinária, como de costume, ao aliar seu ataque pessoal ao Reitor com uma porção de corruptos de lugar cativo nos corredores do mandonismo midiático.


Apesar das discordâncias existentes entre os diversos grupos dentro da prórpia UnB, há um elemento de coesão entre eles que ficou evidente no tom das diversas cartas de repúdio enviadas: A crença na capacidade institucional da UnB em gerênciar estas divergências de forma democrática. Ou seja, coibindo-se excessos, perseguições e assegurando-se o direito participativo das minorias.


Quando os próprios grupos conflitantes no palco democrático da universidade saem em uníssono para defender a excelência democrática e acadêmica da universidade o que mais preocupa é saber que as avaliações consistentes são impedidas de fazerem frente a essa parcela da população que ainda acredita na Veja. É triste e assustador notar que o testemunho de pessoas verdadeiramente devotadas a esta universidade talvez nunca venham a ter os meios de circulação de que gozam jornalista fedelhos e mentirosos. Tolerar este aceitamento passivo de informação em massa é convidativo para que um jornalista um pouco menos desastrado emerja como um novo Goebbels maquiando com cuidado o novo rosto do fascismo e ferindo sem piedade as poucas instituições sadias o suficiente para protegerem os valores da justiça e da democracia.






Tuesday, 5 July 2011

VERDADES

A nobreza está no rabo

da saia

que sobe e desce

na noite.


O orgulho está no rosto

que apanha.


O amor

está no beijo e no ventre

que mudam de mão

em mão

ao sabor das carteiras

abertas

que se esvaziam

por gozo.


A majestade está no reino

da rua

e na coroa

de penas





a verdade

jaz

no sorriso

das putas