Thursday 28 October 2010

TROPEÇANDO NA LIBERDADE

O que se pode dizer pode ser dito claramente; e aquilo de que não se pode falar tem de ficar no silêncio... assim falou certa vez um austríaco que cuidava de jardins e crianças, e que por suas observações sobre as experiências que via ou vivia, ficou conhecido na sociedade dos nomes como filósofo. Ao fazer tal afirmação, esse austríaco Wittgenstein referia-se ao fato de que vivemos numa realidade abstrata, em que buscamos concretizar parte dessa abstração como forma de minimizarmos nosso não domínio sobre o conjunto do que nos cerca e sobre o que somos.
Nessa percepção, esforçamo-nos por criar consensos sociais sobre alguns aspectos desse conjunto de abstrações que percebemos, tentando assim instrumentalizar formas de nos relacionarmos em sociedade a partir de vínculos que sejam igualmente compreendidos pelos indivíduos. Assim, a linguagem surge como contrato social em que delimitamos signos e significados para alguns dos fatos abstratos que percebemos e aos quais desejamos dar uma finalidade concreta. Delimitamos dessa forma nossos mundos a partir dos fatos, não das coisas, lembrando que os fatos são apenas o relato que se faz das coisas.
Conscientes portanto de que a narrativa de nossas vidas é a substancialização dos fatos abstratos que escolhemos experimentar mais intensamente, a linguagem que usamos para desenvolver uma tal narrativa de nossos futuros não é se não os termos do contrato social que firmamos com a história!
Um velho homem, que gastou sua juventude em serrilharias e burocracias públicas para garantir o pão de cada dia, e que hoje tem condições de viajar apresentando um passaporte português, certa vez observou que a maioria de nós vive segundo as regras de um tratado social que não assinamos e com o qual, muitas vezes, não concordamos. O gajo Saramago, consciente desse fato, brinda todos que também se sentem lesados por esse contrato, herdado sabe-se lá de que geração, com suas críticas a um tal sistema jurídico incapaz de rever os termos desse contrato, a uma política restrita aos que aceitam sem problemas os compromissos firmados por Adão e a uma ética estática que mais parece o catequismo desse contrato. Por isso são muitos os que se embriagam com as críticas de Saramago, provando também o doce sabor de outros críticos de nossos tempos, outros homens e mulheres que trazem consigo valores éticos de um mundo diferente e preceitos de justiça distintos dos que experimentamos na realidade que se critica. Ao fazerem isto, escritores e leitores não apenas denunciam dissabores e injustiças naquilo que a linguagem tradicional elegeu para representar a realidade, mas, principalmente, criam uma nova realidade ao rejeitarem significações que não condizem com a realidade social que se deseja... criam uma nova realidade ao ressignificarem a linguagem existente, destituindo-a de seus termos mais cruéis e buscando no mundo das abstrações novas formas de se expressar. Ao criticarem o contrato social de Adão numa linguagem completamente nova, o que fazemos todos, escritores e leitores, falantes e ouvintes, artistas e plateia, é justamente modificar a linguagem, romper na prática com o contrato social que nos encarcera à margem daquilo que sonhamos.
A modificação da linguagem social é o ultimato que os Joãos-Ninguéns podem dar à sentença de nossas vidas comandadas, é o primeiro passo rumo a uma liberdade verdadeira, à liberdade que já existe, mas que não temos a sensibilidade de reconhece-la. Parte da sentença de nossas vidas inclui estarmos na posição de fracasso, sermos vítimas, dessujeitos do sucesso... pois bem, é a cegueira da linguagem da vítima, à qual Nieztche chamou de moral do escravo, que nos impede de reconhecer as vitórias que florescem em nosso caminho, de sentirmo-nos fortalecidos pelos mundos novos que já existem, fazendo com que nossas conquistas sejam obstáculos em nossos caminhos e que, cegos, tropecemos no que deveria ser a escada de nossa ascensão.
Este texto é um esforço para mostrar aos pássaros livres de nosso mundo que as frestas já existem, por pequenas que sejam. É um esforço por valorizar as novas linguagens, por saudar as abstrações que instrumentalizem uma crítica social libertária e transformadora, por lançar luz às vitórias menosprezadas da liberdade, para que seus contornos nos sirvam de plataforma e não mais de tropeços. Tropeçamos diariamente em utopias vividas nas mais distintas realidades sociais, flores cultivadas artesanalmente num jardim cinzento, mas cuja unicidade de sua cor e cheiro seja demasiado incrível para ser atropelado por um questionamento social milenarista incapaz de ver que a luta pela liberdade é, na verdade, o caminho mais longo de onde estamos para exatamente o mesmo ponto, e que a beleza da viagem este nos detalhes. Tentaremos aqui mostrar como o voo pleno dos pássaros livres é uma questão de luta, mas também de valorização do que já se conquistou e do que já existe, que um mundo novo começa nos sonhos e se vive ao relatar esse sonho, não através do matraquear constante das aves engaioladas, mas pelo gritar alegre do condor livre. Se o poeta certa vez nos disse que a praça é do povo como o céu é do condor, tomemos nossas praças de gritos, penas e piruetas, pois é com cor e com som que defenderemos os corredores de um mundo novo, aumentando cada vez mais as distâncias a serem percorridas pelas caravanas da utopia em sua viagem daqui pra exatamente o mesmo lugar!



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