A CONTINUIDADE HISTÓRICA DA ACUMULAÇÃO PRIMITIVA DO CAPITAL: O CASO NOROESTE E A CIDADE DE ASSIS – SP.
Acabo de ler os capítulos sobre acumulação primitiva do capital no livro “O Capital”. Resolvi reler estes capítulos após as conversas que ando tendo com um amigo que acaba de iniciar seu mestrado sobre a Acumulação Primitiva do Capital como fenômeno recente, no qual ele contextualizara o debate para o caso do Setor Noroeste, em Brasília.
Mais uma vez o meu amigo Reacinha mandou muito e trouxe a tona um questionamento aparentemente simples, mas de repercussões gigantescas. O fato é; se olharmos em volta, estamos absolutamente cercados de leis e acontecimentos políticos que não possuem uma explicação mais honesta do que o roubo sistematizado do acesso ao capital por meio da instauração enviesada de direitos de propriedade. Infelizmente, os horrores que marcam de sangue os capítulos 26, 27 e 28 de “O Capital” não ficaram na história como propõe o velho Papai Smurf (que é como costumo chamar o Marx)... estes absurdos estão ai.
Tomando o caso brasileiro agente poderia citar um arcabouço de leis agrárias que reforçam a reprodução do capital nas mãos dos detentores históricos dos meios de produção. O nosso glorioso código florestal, a regularização de terras griladas em 2009 e uma série de outros exemplos recheariam um materialismo histórico tão bem quanto as leis dos Reis Ingleses e Franceses citadas pelo Papai Smurf.
Mas dizendo isso eu corro o risco de ser confrontado por algum arguto internauta liberal a me dizer que a expropriação simples do bem de produção não gera por si só o ciclo da mais-valia e que, portanto, no século XIX quanto agora, os Marxistas estão errados.
Bem... é ai que entra o capítulo 28 do Marx, é ai que entra a cidade de Assis – SP, e é justamente ai que residem meus medos. Na análise histórica que faz, Papai Smurf é consciente de que a massa vadia, o lumpem em festa, não servem de nada para o capitalismo como ele o identifica. Por isso mesmo ele nos apresenta um apanhado de leis que coibiam praticas como a mendicância, a vadiagem e outras mais. Dentre as penas constavam a escravidão do vagabo, sua marcação a ferro quente, mutilação, chicotada e a execução em caso de reincidência. Selecionei aqui alguns parágrafos só pros leitores “sentirem o drama”:
Henrique VIII, em 1530: os mendigos velhos e incapazes de trabalhar recebem uma licença de mendigo. Em contrapartida, chicoteamento e encarceramento para os vagabundos robustos. Devem ser atados à parte de trás de uma carroça e fustigados até que o sangue corra do seu corpo, fazem depois um juramento de regressarem ao seu lugar de nascimento ou aonde moraram nos últimos três anos e de «se porem ao trabalho» (to put himself to labour). Que ironia cruel! No 27.° [ano do reinado] de Henrique VIII o estatuto precedente é repetido, mas reforçado com novos aditamentos. Ao ser apanhado pela segunda [vez] em vagabundagem, o chicoteamen-to deve ser repetido e metade da orelha cortada, à terceira vez, porém, o visado é executado como grande criminoso e inimigo da comunidade.
Eduardo VI: um estatuto do primeiro ano do seu reinado, 1547, ordena que, se alguém se recusar a trabalhar, deve ser sentenciado como escravo da pessoa que o denunciou como desocupado. O dono deve alimentar o seu escravo com pão e água, bebida fraca e os restos de carne que achar convenientes. Tem o direito de o obrigar a qualquer trabalho ainda que repugnante por meio de chicoteamento e de agrilhoamento. Se o escravo se ausentar por 14 dias, é condenado à escravatura por toda a vida e deve ser marcado a fogo com a letra S(59*) na fronte ou nas faces; se ele fugir pela terceira vez, é executado como traidor público. O dono pode vendê-lo, legá-lo, alugá-lo, como escravo, inteiramente como outro bem móvel ou gado. Se os escravos empreenderem algo contra os donos, devem igualmente ser executados. Por informação os juizes de paz devem perseguir o malandro. Se se verificar que um vadio não fez nada durante três dias, deve ser levado para o seu lugar de nascimento, marcado a fogo com um ferro ao rubro, no peito, com o sinal V(60*), e aí, com cadeias, deve ser utilizado nas ruas ou em qualquer outro serviço. Se o vagabundo der um lugar de nascimento falso, como castigo, deve ficar escravo por toda a vida desse lugar, dos moradores ou da corporação e ser marcado a fogo com um S. Todas as pessoas têm o direito de tirar os filhos aos vagabundos e de os manter como aprendizes — os rapazes até aos 24 anos, as raparigas até aos 20 anos. Se fugirem, deverão ficar escravos do dono até essa idade, o qual, consoante quiser, os poderá prender com cadeias, chicotear, etc. Cada dono pode pôr um anel de ferro à volta do pescoço, do braço ou da perna do seu escravo, para o conhecer melhor e estar seguro de que é seu(61*). A última parte deste estatuto prevê que certos pobres devem ser empregados pelo lugar ou pelos indivíduos que lhes queiram dar de comer e de beber e encontrar trabalho para eles. Esta espécie de escravos paroquiais conservou-se, em Inglaterra, até bem dentro do século XIX, sob o nome de roundsmen (rondadores).
Isabel, em 1572: mendigos sem licença e acima dos 14 anos de idade devem ser fortemente chicoteados e marcados a fogo na orelha esquerda, no caso de ninguém os querer tomar ao seu serviço por dois anos; em caso de repetição, se estão acima dos 18 anos de idade, devem ser executados, no caso de ninguém os querer tomar ao seu serviço por dois anos; à terceira reincidência, porém, são executados sem piedade como traidores públicos. Estatutos semelhantes: no 18.° [ano do reinado] de Isabel, c. 13, e em 1597(62*). Jaime I: uma pessoa vadia e mendiga é declarada malandro e vagabundo. Os juizes de paz nas Petty Sessions[N77] têm o poder de os mandar chicotear em público e de os encarcerar, na primeira vez que forem apanhados, por 6 meses, na segunda, por 2 anos. Durante a prisão devem ser chicoteados tanto e tão frequentemente quanto os juizes de paz acharem por bem... Os vagabundos incorrigíveis e perigosos devem ser marcados a fogo com um R(63*) no ombro esquerdo e postos a trabalhos forçados e, se forem de novo apanhados a mendigar, devem ser executados sem piedade. Estas ordenações, legalmente vinculativas até aos primeiros tempos do século XVIII, só foram revogadas por Anano 12.° [ano do seu reinado], c. 23.
Leis semelhantes em França, onde, por meados do século XVII, foi estabelecido em Paris um reino dos vagabundos (royaume des truands). Ainda nos primeiros tempos de Luís XVI (Ordenança de 13 de Julho de 1777), todo o homem sãmente constituído dos 16 aos 60 anos, se não tivesse meios de existência e exercício de uma profissão, era mandado para as galeras. Semelhante é o estatuto de Carlos Vpara os Países Baixos de Outubro de 1537, o primeiro édito dos Estados e Cidades da Holanda de 19 de Março de 1614, a proclamação das Províncias Unidas de 25 de Junho de 1649, etc.
Assim, o povo do campo, expropriado à força da terra, expulso e feito vagabundo, foi chicoteado, marcado a fogo e torturado por leis grotesco-terroristas, [com vista] à disciplina necessária ao sistema do trabalho assalariado.
Aqui o meu leitor liberal vai cair de pau dizendo que nossa democracia liberal verde e amarela jamais suportaria uma tal violação do direito personalíssimo a passar fome, a ser desempregado. Horas bolas, não é esse, afinal de contas, o legado histórico do liberalismo: garantir a liberdade de sermos famintos, de não conseguirmos empregos, de sermos fantasmas famintos pelas cidades? ... aparentemente não, e pra os que diziam que a coisa não podia ficar pior, a abordagem do Reacinha parece descortinar um inferno novinho em folha.
Embora eu ainda não tenha notícias de nenhuma lei ou política sistêmica e direta que leve à escravização, tortura e extermínio de vagabos (essa parece ser a função da ética policial), o fato é que a gloriosa cidade de Assis há algum tempo estrelou nas telas da Bandeirantes enquanto seus peões de farda regozijavam-se quebrando o dedo e executando a violenta prisão do repórter Danilo Gentili, então disfarçado de alguém que não estava fazendo nada (não achei um termo mais adequado para o que ele (não)estava fazendo).
Como o reporter vestia algo além de um uniforme e tinha um corte de cabelo destoante do visual Gestapo 2010, imaginei que sua prisão fosse ser pela “substancial evidencia de que se tratava de um ladrão ou usuário de drogas”, que é uma experiência comum no Brasil, a qual eu já tive o desprazer de experimentar em mais de uma ocasião. Porém, fiquei surpreso ao ver que a alegação que pesava era a de que ele incorrerá no crime de vadiagem... uma antiqüíssima lei brasileira que fora recentemente restaurada na cidadezinha.
Retomando o contexto desta observação... o fato é que tortura, escravidão e extermínio eu ainda não vi assim regulamentado “na letra da lei”, mas a prisão, essa ta gravada pra quem quiser ver http://www.youtube.com/watch?v=1LwwZ3JvTF8 .
Além de me preocupar com os rumos que isso pode tomar, principalmente dadas as entusiásticas opiniões da pequena burguesia de Assis – SP, me preocupo com a cara-de-pau dos liberalistas que falam de surgimento da economia em termos românticos... chegando ao absurdo de abstrair essa racionalidade assassina como resultado de um esforço ético. Curioso como, tendo vivido um século antes de Marx e, portanto, a uma distância histórica muito menor destas leis sanguinárias que obrigavam os camponeses expropriados a venderem seu trabalho por preços ridículos, Adam Smith não se deu ao trabalho de questionar em que medida a ameaça de escravidão, morte e tortura estavam por trás do fato de o padeiro servir-lhe o pão, o açougueiro cortar-lhe a carne e o cervejeiro servir-lhe a bebida... Não, pra que isso... muito mais fácil é fechar-se numa real salinha de universidade e dizer que “não é da benevolência do padeiro, do açougueiro ou do cervejeiro que eu espero que saia o meu jantar, mas sim do empenho deles em promover seu "auto-interesse".
Ele disperdiçou uma chance boa de dizer algo coerente... de fato é uma questão de auto-interesse... só faltou dizer que o auto-interesse aqui era o de ficar vivo, inteiro e o mais livre que fosse possível.
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